é o tal do ócio criativo, eu acho

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Oeste

Marina acordou com o Sol queimando seu rosto. Sua cabeça doía, latejava, como se uma orquestra descompassada tocasse dentro de seu crânio. Esfregou as mãos contra a testa, tentando apagar a dor, mas não adiantou.
- Que horas são? - pensou. Olhou para o pulso, mas não havia mais relógio.
Resolveu levantar, suas costas doíam, sentia como se tivesse levado uma surra e seus olhos ardiam como se houvesse areia dentro de suas pálpebras.
Ao seu redor vestígios da festa. Garrafas vazias de vodka, cachaça e até de pisco, jogadas pelo chão refletiam a luz do Sol e iluminavam ainda mais o ambiente, no canto da sala um pequeno monte de latas de cerveja – cinquenta, talvez mais – ao lado de uma poça de vômito bege formavam uma figura conhecida, porém não saberia descrever ao certo o quê, na mesa de centro duas seringas apontavam para uma bandeja ainda com resíduos de cocaína, como dormira em cima um grande cinzeiro, bitucas de cigarro e de maconha estavam grudados em todo seu corpo que fedia a uma mistura de pinga, nicotina e suor.
Todo aquele ambiente começou a lhe causar naúseas, levantou-se rapidamente, ainda tropeçou em um rapaz caído no chão apenas de cueca, que nem sentiu o chute na costela, e conseguiu chegar a varanda. Era um prédio alto, estava certamente além do 15º andar. A cidade parecia estar por de mais quieta, algo parecido com uma ressaca cosmopolita, olhou para baixo, havia pouco movimento, apenas alguns carros passavam distraídos e um casal de mãos dadas gritava para que o filho pequeno que corria na frente não atravessasse a rua sem eles. Devia passar de duas da tarde, já que o Sol se encaminhava para oeste, mas ainda estava alto no céu de brigadeiro. Nenhuma nuvem compunha o cenário, apenas o contorno dos prédios e de uma grande montanha formavam a linha que dividia a vida diária da amplitude celeste. Lembrou-se, era domingo.
Marina adorava os domingos, quando era criança seu pai a levava ao parque. Brincavam no play ground, no tanque de areia, corriam na grama com seu labrador bege, Adamastor, cuja única função de sua existência era correr atrás de uma velha bolinha de tênis. O picolé do seu Antônio, um velhinho que tinha uma cara muito engraçada, era um dos pontos altos das tardes de domingo, Marina sempre pedia o de uva e seu pai o de coco, e ficavam lá até o anoitecer só pra ver o pôr-do-sol. Durante o verão ele se punha bem atrás de uma montanha, que a pequena Marina achava ser o ponto mais alto do mundo.
- O que tem depois daquele morro, pai?
- O Oeste, é pra lá que o Sol vai depois que ele se põe. Ele fica dormindo lá e de manhã acorda daquele outro lado. - Explicou o pai de Marina com a sabedoria que só os pais possuem.
- E como é lá?
De repente um barulho traz Marina para a realidade. Era Léo, seu amigo, ou namorado, - nunca quiseram rotular a relação - vindo, ainda bêbado, tropeçando pela sala:
- E aí, princesa! Porra, minha cabeça tá doendo pra cara...
- Tô indo. – Disse Marina sem deixar ele terminar a frase.
- Pô, como assim?
Ela o deixou falando sozinho, pegou sua bolsa no sofá e saiu batendo a porta. Enquanto esperava o elevador uma garrafa estorou na parede do apartamento, seguido de vários gritos abafados, que para qualquer outra pessoa não fariam nenhum sentido fonético, porém que Marina entendia perfeitamente:
- Vai, sua vagabunda!! Depois de tudo que eu te fiz, filha da puta! Vaca! Vaca!
Ela não queria ouvir aquilo, ela gostava do Léo, afinal ele era um “cara legal”, “bom papo”, “bonitinho, vai”. Eles se conheceram na faculdade, ele vinha do interior, seu pai o convecera de que ele teria que ser um puta executivo, e de fato ele tinha potencial yuppie. Acabaram se envolvendo, eles passavam noites inteiras conversando até o amanhecer, só pra ver os primeiros raios de Sol. Adoravam ver a cidade despertar, levantando, como eles, para o cotidiano. Começaram a descobrir juntos a vida: a primeira transa, o primeiro porre homérico, o primeiro baseado. Tudo juntos.
Então, Marina percebeu que estava disposta a seguir em suas descobertas de seu jeito, sozinha quem sabe, não que se achasse melhor que ele ou qualquer coisa assim, até mesmo porque ele era parte dela, era parte de sua história e ela sabia e gostava disso. Simplesmente sacou que estava em outra vibe, que Léo estava seguindo em outro ritmo - e cada um tem seu próprio, e é isso, também, que faz com que seja tão encantadoramente foda se relacionar. Talvez se reencontrassem em algum outro ponto da vida, mas agora ela sabia que não dava pra caminhar mais juntos.
Ela desceu pelas escadas e chegou a rua quase vazia, respirou profundamente e começou a andar. Se alguém a viu naquele momento não deve ter entendido por que aquela jovem sorria e olhava para uma montanha a oeste, enquanto uma lágrima deixava um leve rastro em seu rosto.